Cotidiano

Sem dúvida, às vezes, eu fingia levar a vida a sério.

Sem dúvida, às vezes, eu fingia levar a vida a sério. Mas, bem depressa, o que havia de frívolo na própria seriedade evidenciava-se a mim e eu continuava apenas a desempenhar meu papel da melhor forma que podia. Representava o eficiente, o inteligente, o virtuoso, o patriota, o indignado, o indulgente, o solidário, o edificante. .. Em suma, paro por aqui, o senhor já deve ter compreendido que eu era como os meus holandeses, que estão presentes sem estar: eu estava ausente no momento em que ocupava o máximo de espaço. Só fui verdadeiramente sincero e entusiasta no tempo em que praticava esportes e no exército, quando representava as peças que encenávamos para nossa diversão. Havia nos dois casos uma regra do jogo, que não era séria e que ‘nos divertíamos em considerar como tal. Ainda agora, as partidas do domingo num estádio superlotado e o teatro, que amei com uma paixão sem igual, são os únicos lugares no mundo em que me sinto inocente.

Mas quem admitiria que semelhante atitude possa ser legítima, quando se trata do amor, da morte e do salário dos miseráveis? Que fazer, no entanto? Eu só imaginava os amores de Isolda nos romances ou num palco. Os moribundos pareciam-me, às vezes, compenetrados do seu papel. As réplicas dos meus clientes pobres pareciam-me sempre restringir-se à mesma cantilena. A partir daí, vivendo entre os homens sem compartilhar dos seus interesses, não conseguia acreditar nos compromissos que assumia. Era suficientemente educado, e suficientemente indolente, para corresponder ao que esperavam de mim na minha profissão, na minha família ou na minha vida de cidadão, mas todas as vezes com uma espécie de distração, que acabava por estragar tudo. Vivi minha vida inteira sob um duplo signo e as minhas atividades mais sérias foram, muitas vezes, aquelas em que me sentia menos comprometido. Afinal, não seria isso que, para agravar minhas asneiras, não consegui me perdoar, que me fez resistir com o máximo de violência contra o julgamento que eu sentia em ação, em mim e ao meu redor, e que me obrigou a procurar uma saída?

Published by rcordioli

One comment on “Sem dúvida, às vezes, eu fingia levar a vida a sério.”

  1. Claudia Nuñes says:

    Hoje finjo tanto que levo a vida à sério que ela está sisuda por achar-se tão séria! De tanta seriedade, tenho às vezes que fingir um entusiasmo nas coisas sérias. Entusiasmo difícil porque não é breve, é seriado, contínuo, diligentemente auto-motivado! Sinceridade nisso tudo soaria grosseira…

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