Cotidiano

Barbatana num deserto de águas

– Esses instantes de fuga não devem ser desprezados. São raros demais. Taiti se torna possível. Debruçado nesse parapeito vejo ao longe uma vastidão de água. Uma nadadeira se vira. Essa impressão visual nua está desligada de qualquer racionalização, salta por si quando alguém vêuma barbatana de delfim no horizonte. Muitas vezes impressões visuais transmitem assim rápidas manifestações que no futuro haveremos de desvendar e colocar em palavras. Por isso, anoto no “B”: “Barbatana num deserto de águas”. Eu, que estou perpetuamente tomando notas na margem da minha mente, para alguma afirmação final, faço esta anotação aguardando uma noite de inverno.
– Agora irei almoçar em qualquer lugar, erguerei meu cálice, olharei através do vinho, observarei com mais do que meu alheamento habitual, e, quando uma bela mulher entrar no restaurante e vier entre as mesas, direi a mim mesmo: “Olher como ela chega diante do deserto das águas”. Uma observação sem significado, mas, para mim, solene e cor de ardósia, com um som fatal de mundos desmoronando e águas despencando na destruição.

Published by rcordioli

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