É bem sabido que o termo “Paquistão”, um acrônimo, foi pensado originalmente na Inglaterra por um grupo de intelectuais muçulmanos. P de punjabis, A de afegãos, K de kaxemires, S de sind e “tão”, dizem eles, de Baluquistão. (Nenhuma menção à parte oriental, como podem notar; Bangladesh nunca teve seu nome no título, então ela entendeu a insinuação e se secessionou dos secessionados. Imagine o efeito dessa dupla secessão sobre as pessoas!) Portanto, foi uma palavra nascida no exílio que depois foi para o Oriente, foi tras-ladada ou tra-duzida e se impôs à história; um migrante retornado, assentando-se na terra da partição, formando um palimpsesto no passado. Um palimpsesto encobre o que existe por baixo. Para construir o Paquistão foi preciso encobrir a história indiana, negar que séculos indianos jazem por baixo da superfície do Tempo Padrão Paquistani. O passado foi reescrito; não havia mais nada a fazer.
Quem comandou o trabalho de reescrever a história? Os imigrantes, os mohajirs. Em que língua? Urdo e inglês, ambas línguas importadas, embora uma tenha viajado menor distância que a outra. É possível ver a história subsequente do Paquistão como um duelo entre duas camadas de tempo, o mundo encoberto forçando sua volta através do que foi imposto. O verdadeiro desejo de todo artista é impor sua visão do mundo; e o Paquistão, a casca, o palimpsesto fragmentário, cada vez mais em guerra consigo mesmo, pode ser descrito como um fracasso da mente sonhadora. Talvez os pigmentos usados fossem os pigmentos errados, impermanentes, como os de Leonardo; ou talvez o lugar fosse apenas insuficientemente imaginado, um quadro cheio de elementos inconciliáveis, a barriga à mostra dos sáris imigrantes contra as discretas shalwar-kurtas nativas shindi, urdu versus punjabi, agora versus antes: um milagre que deu errado.
Quanto a mim: eu também, como todos os migrantes, sou um fantasista. Construo países imaginários e tento impô-los aos que existem. Eu também encaro o problema da história: o que guardar, o que jogar fora, como me apegar àquilo a que a memória insiste em renunciar, como lidar com a mudança. E voltando à ideia de “raízes”, devo dizer que não consegui me libertar inteiramente. Às vezes, me vejo, sim, até como uma árvore, bem grandiosa como o freixo Yggdrasil, a mítica árvore-mundo da lenda nórdica. O freixo Yggdrasil tem três raízes. Uma desce ao poço do conhecimento no Valhalla, onde Odin vai beber. Uma segunda está sendo lentamente consumida pelo fogo imorredouro de Muspellheim, reino do deus das chamas Surtur. A terceira está sendo pouco a pouco roída pela assustadora fera chamada Nidhögg. E quando fogo e monstro tiverem destruído duas dessas três coisas, o freixo tombará e a escuridão baixará. As trevas dos deuses: o sonho de morte da árvore.