Viajante clandestino, eu adormecera no banco e o condutor me sacudia: “Sua passagem!”. Cumpria-me reconhecer que eu não tinha passagem. Nem dinheiro para pagar na hora o preço da viagem. Eu começava a defender o culpado: esquecera os meus documentos de identidade em casa, e sequer me lembrava mais como iludira a vigilância do picotador de bilhetes, mas admitia que me introduzira fraudulentamente no vagão. Longe de contestar a autoridade do condutor, eu protestava vivamente o meu respeito por suas funções e me submetia de antemão à sua decisão. Neste ponto extremo da humildade, não podia mais me salvar a não ser invertendo a situação: eu revelava, pois, que razões importantes e secretas me chamavam a Dijon, razões que interessavam à França e talvez à humanidade. A encarar as coisas sob essa nova luz, não se acharia pessoa, em toda a composição, que tivesse como eu o direito de ocupar nela um lugar. Tratava-se, sem dúvida, de uma lei superior que contradizia o regulamento, mas, assumindo a responsabilidade de interromper minha viagem, o condutor provocaria graves complicações cujas consequencias cairiam sobre sua cabeça; eu o conjurava a refletir: era razoável condenar a espécia inteira à desordem a pretexto de manter a ordem num trem? Assim é o orgulho: a defesa dos miseráveis. Só têm direito de ser modestos os viajantes munidos de passagem. Eu nunca sabia se obtivera ganho de causa: o condutor guardava silêncio; eu recomeçava minhas explicações; enquanto falasse, estava certo de que ele não me obrigaria a descer. Permanecíamos face a face, um mudo e outro inesgotável, no trem que nos transportava para Dijon. O trem, o condutor e o delinqüente, era eu.