Sob este aspecto, somos todos como aquele francesinho que, em Buchenwald, teimava em querer apresentar uma reclamação ao escrivão, prisioneiro como ele, que registrava a sua chegada. Uma reclamação? O escrivão e seus colegas riam: “Inútil, meu velho. Aqui, não se reclama”. “Mas, veja bem, meu senhor”, dizia o francesinho, “o meu caso é excepcional. Sou inocente!”
Somos todos casos excepcionais. Todos queremos recorrer de qualquer coisa! Cada qual exige ser considerado inocente, a todo custo, mesmo que para isso seja preciso acusar o gênero humano e o céu. Daremos uma alegria medíocre a um homem, se lhe elogiarmos os esforços graças aos quais se tornou inteligente ou generoso. Mas ele exultará se admirarmos sua generosidade natural. Inversamente, se dissermos a um criminoso que seu erro não decorre da sua natureza, nem do seu caráter, e sim de circunstâncias infelizes, ele nos ficará violentamente reconhecido. Durante a defesa, escolherá até mesmo esse momento para chorar. No entanto, não há mérito nenhum em ser honesto, nem inteligente pelo nascimento! Assim como não se é certamente mais responsável em ser criminoso por natureza do que devido a circunstâncias. Mas esses bandidos querem a absolvição, isto é, a irresponsabilidade, e, sem vergonha, extraem justificativas da natureza ou desculpas das circunstâncias, mesmo que sejam contraditórias. O essencial é que sejam inocentes, que suas virtudes pela graça do nascimento não possam ser postas em dúvida, e que seus erros, nascidos de uma infelicidade passageira, nunca sejam mais do que provisórios. Já lhe disse, trata-se de fugir ao julgamento. Como é difícil fugir ao julgamento, e melindroso fazer, a um só tempo, admirar e desculpar a própria natureza, todos eles procuram ser ricos. Por quê? O senhor já se perguntou isso alguma vez? Pelo poder, certamente. Mas, sobretudo, porque a riqueza nos livra do julgamento imediato, nos retira da multidão do metrô para nos encerrar numa carroceria toda niquelada, nos isola em vastos jardins particulares, carros leitos, camarotes de luxo. A riqueza, caro amigo, não é ainda a absolvição, mas uma suspensão de pena, sempre fácil de conseguir. . .
Sendo uma suspensão da pena, a riqueza é o passe livre da maldade? É a consciência leve, de tão livre em seu leque de ações, e por isso tão amena e fresca? Uma frescura que não vem da inocência, mas da certeza de que não se fará nenhum julgamento? A riqueza, então, infla a alma, presa num corpo pesado e rechunchudo, pleno de guloseimas. Infla até que ela se sinta leve e vôe, cada vez mais alto. Até – e eis aqui a vingança de minha imaginação – vir um bendito pica-pau e a estourar, com sua maldade irônica, seguida daquele riso indefectível… riso que enche meus ouvidos na lembrança do julgamento feroz dos desenhos animados.