Ao contrário da errónea afirmação deixada cinco linhas atrás, que contudo nos dispensaremos de corrigir in loco uma vez que este relato se situa pelo menos um grau acima do mero exercício escolar, o homem não havia mudado, o homem era o mesmo. A repentina alteração de humor observada em Tertuliano Máximo Afonso e que tão abalado havia deixado o professor de Matemática não fora mais que uma simples manifestação somática da patologia psíquica vulgarmente conhecida como ira dos mansos. Fazendo um breve desvio à matéria central, talvez consigamos entender-nos melhor se nos reportarmos à divisão clássica, é certo que algo desacreditada pelos modernos avanços da ciência, que distribuía os temperamentos humanos em quatro grandes tipos, a saber, o melancólico, produzido pela bílis negra, o fleumático, que obviamente resultava da fleuma, o sanguíneo, relacionado não menos obviamente com o sangue, e finalmente o colérico, que era consequência da bílis branca. Como facilmente se verifica, nesta divisão quaternária e primariamente simétrica dos humores não havia lugar onde pudesse arrumar-se a comunidade dos mansos. No entanto, a História, que nem sempre se equivoca, assegura-nos que eles já existiam, e até em grande número, naqueles tempos remotos, tal como hoje a Actualidade, capítulo da História que sempre está por escrever, nos diz que não só continuam a existir, como existem ainda em muito maior número. A explicação desta anomalia, que, aceitando-a, tanto nos serviria para compreender as obscuras penumbras da Antiguidade como as festivas iluminações do Agora, talvez possa encontrar-se no facto de, quando da definição e estabelecimento do quadro clínico acima descrito, um outro humor haver sido esquecido. Referimo-nos à lágrima. É surpreendente, para não dizer filosoficamente escandaloso, que algo tão visível, tão corrente e tão abundante como sempre foram as lágrimas tenha passado despercebido aos venerandos sábios da Antiguidade e tão pouca consideração mereça aos não menos sábios se bem que mernos venerandos do Agora. Perguntar-se-á que tem esta extensa digressão que ver com a ira dos mansos, sobretudo se tomarmos em conta que a Tertuliano Máximo Afonso, que tão flagrantemente lhe deu vazão, não o vimos chorar até agora. A denúncia que acabamos de fazer da ausência da lágrima na teoria da medicina humoral não significa que os mansos, por natureza mais sensíveis, e portanto mais propensos a essa manifestação líquida dos sentimentos, andem todo o santo dia de lenço na mão assoando o nariz e enxugando de minuto a minuto os olhos pisados de choro. Significa, sim, que muito bem poderá uma pessoa, homem ou mulher, estar a despedaçar-se no seu interior por efeito da solidão, do desamparo, da timidez, daquilo que os dicionários descrevem como um estado afectivo desencadeado nas relações sociais e com manifestações volitivas, posturais e neurovegetativas, e não obstante, às vezes até por causa de uma simples palavra, por um dá-cá-aquela-palha, por um gesto bem intencionado mas em excesso protector, como aquele que há pouco escapou ao professor de Matemática, eis que o pacífico, o dócil, o submisso de repente desaparecem da cena e em seu lugar, desconcertante e incompreensível para os que da alma humana já supunham saber tudo, surge o ímpeto cego e arrasador da ira dos mansos. O mais normal é que dure pouco, mas dá medo quando se manifesta. Por isso, para muita gente, a prece mais fervorosa, na hora de ir para a cama, não é o consabido pai-nosso ou a sempiterna ave-maria, mas sim esta, Livrai-nos, Senhor, de todo o mal, e em particular da ira dos mansos.
Ira breve, furiosa, mas que se abranda em busca de novos sorrisos desconcertados… ira necessária, para que os mansos não vivam desidratados, e que sua mansidão não seja confundida com idiotice.